quinta-feira, 30 de julho de 2009

Texto de Consulta

A página branca indicará o discurso
Ou a supressão do discurso?
A página branca aumenta a coisa
Ou ainda diminui o mínimo?
O poema é o texto? O poeta?
O poema é o texto + o poeta?
O poema é o poeta – o texto?
O texto é o contexto do poeta
Ou o poeta é o contexto do texto?
O texto visível é o texto total
O antetexto o antitexto
Ou as ruínas do texto?
O texto abole
Cria
Ou restaura?

Murilo Mendes

terça-feira, 28 de julho de 2009

Milton Nascimento e Caetano Veloso - A Terceira Margem do Rio




A Terceira Margem do Rio

Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.
Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.
No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.
Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

1

into the strenuous briefness
Life:
handorgans and April
darkness, friends

i charge laughing.
Into the hair-thin tints
of yellow dawn,
into the women-coloured twilight

i smilingly
glide.
into the big vermilion departure
swim, sayingly;

(Do you think?)the
i do, world
is probably made
of roses e hello:

(of solongs and, ashes)

Tradução:

1

na estrênua brevidade
Vida:
realejos e abril
treva,amigos

eu me lanço rindo.
Nas tintas fio-de-cabelo
da aurora amarela,
no ocaso colorido de mulheres

eu sorrisando
deslizo. Eu
na grande viagem escarlate
nado,dizedomente;

(Você sabe?) o
sim,mundo
é provavelmente feito
de rosas & alô:

(de atélogos e,cinzas)


e. e. cummings, tradução de augusto de campos.

terça-feira, 21 de julho de 2009

DI CAVALCANTI

DI CAVALCANTI/Ninguém Assistiu ao Formidável Enterro de Sua Última Quimera; Somente a Ingratidão, Essa Pantera, Foi Sua Companheira Inseparável (1977)

Ficha Técnica:

Cineasta: Glauber Rocha
Gênero: Documental
Díálogo: Português
Legenda: Sem Legenda


"Di Cavalcanti Di Glauber", ou "Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última quimera; somente a ingratidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável" é uma curta polêmica, quando o pintor brasileiro Emiliano Di Cavalcanti morreu, Glauber Rocha foi ao funeral com uma câmera na mão e uma idéia (discutível) na cabeça. Glauber filmou o enterro, o corpo no caixão, enquanto a família de Di, aos berros, pedia para ele ir embora. Ao fundo, tocava o samba-funk ''Umbabarauma, Homem Gol'', na voz de Jorge Ben Jor. Premiado no festival de Cannes, mais tarde o filme foi proibido pela justiça brasileira, a pedido dos familiares de Di, alegando que Glauber desrespeitou o funeral e transformou aquele momento sagrado num carnaval.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

O Jumento Santo, de William Paiva

Reportagem publicada na Revista BRAVO! Abril/2009


Nossa Aposta - William Paiva


Com um filme de estreia que se baseia no universo do cordel, o pernambucano vira referência entre os animadores brasileiros


Por Mariana de Toledo

"Dá impressão de que ele praticou pingue-pongue escondido durante anos e só foi jogar com a turma quando, além de já dominar plenamente a técnica, também tinha o que ensinar." Substitua as raquetes de tênis de mesa por lápis, papel, computador e sintetizadores, e o personagem que surge é o animador pernambucano William Paiva, segundo a curiosa descrição de Marcelo Marão, fundador da Associação Brasileira de Cinema de Animação.
Recifense de 34 anos, com apenas três de carreira, William conquistou prêmios no Cine PE e no Granimado, dois importantes festivais do país, assim que lançou seu primeiro curta, O Jumento Santo e a Cidade que Se Acabou antes de Começar. O filme, bem-humorado, se inspira no imaginário e na iconografia da literatura de cordel — um universo até então pouco explorado pelos animadores brasileiros — e atraiu mais de 25 mil visitas no YouTube. Agora, o artista está desenhando o storyboard de seu terceiro trabalho, Roda Gigante, que tratará de infância e da relação entre pais e filhos.
Foi em 2006 que William recebeu um convite das Faculdades Integradas Barros Melo, de Olinda, para coordenar o estúdio de animação mantido pela instituição. Até aquele momento, ele estudara programação visual e ganhava a vida como professor de inglês, músico, diretor de arte em agência de publicidade e produtor de discos de bandas como Mombojó e Volver. Tão logo aceitou a oferta, passou a dividir seu tempo entre o estúdio de música e o da Barros Melo, onde acabou fazendo seu filme de estreia. Codirigido por Leonardo Domingues, O Jumento Santo narra a história de um protótipo de mundo criado por Deus, a cidade Noite Feliz. A produção de 11 minutos levou seis meses para ficar pronta e arrancou gargalhadas de cerca de 3 mil pessoas na abertura do Festival Audiovisual do Recife, o Cine PE, em abril de 2007. Faturou, de uma só vez, os prêmios de melhor vídeo, melhor roteiro, melhor direção e o da crítica. O rebuliço se deu também no Granimado 2008, o Festival de Animação de Gramado (RS), mais de um ano depois do Cine PE. "O filme venceu novos prêmios e ficou muito popular. Foi uma coisa bem doida", relembra William. "Algumas pessoas tinham O Jumento Santo no iPod, outras vinham falar comigo usando frases do curta, inclusive com o sotaque nordestino do narrador."
Ele espera que as portas abertas por O Jumento Santo facilitem a chegada aos festivais de sua segunda animação, Voltage. No filme de 2007, com pouco mais de quatro minutos, 8 mil desenhos do artista plástico Felippe Lyra mostram seres metade humanos, metade sintetizadores, que se relacionam por meio de fios e constroem uma música. A trilha sonora do curta ficou por conta de William e Leonardo Domingues, que já haviam composto a música de O Jumento Santo.
"Voltage parece ter dez anos de distância do anterior, de tanta experiência acumulada: não só em maturidade técnica, mas principalmente na busca de uma estrutura narrativa diferente e de um novo design de personagens", elogia Marão, que também leciona na pós-graduação do curso de animação da PUC-RJ. O professor explica que, em lugares afastados do eixo Rio-São Paulo, onde se concentra boa parte dos animadores, é difícil ver evoluções tão grandes em tão pouco tempo, pelo isolamento. Ele completa: "William está em um lugar que, há uma década, buscava referências pelo país e pelo mundo. Hoje, já pode competir de igual para igual com qualquer profissional do Brasil ou do exterior".

Assista aqui à animação de O Jumento Santo, de William Paiva



2ª Parte

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Homero e as Musas

O seguinte artigo foi publicado por Antônio Cícero na coluna da "Ilustrada", da Folha de São Paulo, sábado, 28 de junho de 2009. Deliciem-se...


É COMUM O pressuposto de que tanto a consideração puramente estética da obra de arte quanto a autonomia da arte são fenômenos exclusivamente modernos. A verdade, porém, é que, paradoxalmente, já se manifestam modalidades de ambas entre os primeiros poetas gregos cujas obras chegaram até nós.
Como se sabe, os poetas arcaicos se consideravam inspirados pelas Musas, deusas que eles descreviam como filhas de outra divindade, a Memória. Normalmente, essa filiação é interpretada de duas maneiras. Por um lado, supõe-se que ela simbolize o fato de que os poemas preservavam a memória dos feitos originários da comunidade. Assim, o sentido da "Ilíada", de Homero, teria sido manter a memória da Guerra de Troia.
Essa interpretação, porém, é desmentida pelo fato de que a "Odisseia", por exemplo, nada tem a ver com fatos históricos. Ademais, Hesíodo, outro poeta arcaico, fazia suas Musas se gabarem de dizer "muitas mentiras parecidas com a verdade": o que dificilmente fariam, se pretendessem ser as guardiãs da memória do passado.
A outra interpretação se apoia no fato de que a poesia arcaica não era escrita, mas oral. Ela supõe que os poetas recitassem os poemas tradicionais que tivessem memorizado. A deusa Memória simbolizaria a memorização.
Entretanto, o estudo da poesia oral moderna mostrou que, ao recitar os poemas, os poetas orais primários não os repetem palavra por palavra, mas de modo criativo, num processo denominado "composition in performance" (mais ou menos "composição durante a apresentação"), no qual a memorização tem um papel limitado. De fato, Telêmaco, na "Odisseia", afirma serem tanto mais apreciadas as canções quanto mais novas.
Na verdade, tudo indica que os poetas consideram as Musas filhas da Memória, não porque os poemas por elas inspirados guardem a memória de outras coisas, ou porque sejam memorizáveis, mas porque são memoráveis. Já os primeiros poetas líricos, como Píndaro, jactavam-se de que a memorabilidade dos seus poemas conferia memorabilidade também às pessoas de que tratavam.
Mas por que o poeta faz questão de atribuir às Musas e não a si próprio a capacidade de produzir o memorável? Que Homero, por exemplo, faz questão disso, mostra-o a lenda, por ele relatada, do poeta Tâmiris, o Trácio. Atribuindo a si próprio a genialidade dos seus poemas, Tâmiris desafiou as Musas para um duelo. Tendo sido derrotado, as Musas lhe tomaram o talento e a visão.
No fundo, o poeta faz questão de depender das Musas porque tal associação o enobrece. Ele se considera o discípulo e o favorito das deusas. Assim, de certo modo, é como se delas descendesse. Homero faz Ulisses declarar que "entre todos os homens da terra, os poetas merecem honra e respeito, pois a eles a Musa, que ama a raça dos poetas, ensinou".Com isso, o poeta conquista a liberdade de cantar, nas palavras de Telêmaco, na "Odisseia", "por onde quer que a mente o conduza". Se não tivesse sido atribuída origem divina às palavras do poeta, elas jamais teriam conquistado semelhante liberdade.
Há uma circularidade evidente no fato de que quem legitima a liberdade do poeta sejam as Musas, mas quem garanta a existência das Musas seja o poeta. Só a evidência de que ele esteja possuído pela divindade quebra tal círculo. Ora, a natureza da evidência de que as Musas possuem o poeta é sugerida pelos versos nos quais o poeta Teógnis afirma que as Musas cantavam "um belo poema: o belo é nosso, o não belo não é nosso".
A beleza dos poemas – que é o que os torna memoráveis – é prova de sua origem divina, e sua origem divina legitima a liberdade do poeta. Por direito, seus poemas são belos por serem divinos; de fato, porém, são divinos por serem belos.
Logo, a primeira preocupação do poeta não é fazer o poema "verdadeiro", mas fazer, por onde quer que, para tanto, sua mente – sua Musa – o leve, o poema inesquecivelmente belo, o poema memorável pela sua beleza; e a primeira exigência do seu público não é escutar um poema "verdadeiro", mas um poema cuja origem se encontre na dimensão da divindade ou, o que dá no mesmo, um poema que lhe dê prazer estético, pois o "cantor divino" é, como se lê na "Odisseia", aquele que "delicia ao cantar".
Uma vez que o puro esplendor do poema constitui a prova da sua autoria divina, nele as considerações morais ou religiosas se subordinam a considerações estéticas. Se, como diz Goethe, os gregos sonharam mais esplendidamente o sonho da vida é porque -agora sou eu que o digo- sonharam sonhos de poetas e não de profetas, pastores ou sacerdotes.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O CINEMA DE MAYA DEREN

Quem foi?

Nascida Eleanora Derenkovskaya, foi uma realizadora e teórica cinematográfica norte-americana dos anos 1940 e 1950. Deren também foi coreógrafa, dançarina, poeta, escritora e fotógrafa.

Nascimento e Família

Nascida Eleanora Derenkovskaya, a 29 de Abril de 1917 (o ano da Revolução Russa), em Kiev, na Ucrânia, filha de Marie Fiedler, que tinha estudado música, e de Solomon Derenkovsky, psiquiatra, Maya Deren começou por receber a educação reservada aos privilegiados cultos. Mas em 1922, com os Programas anti-semitas do Estado, a crise da economia e a proximidade política de seu pai a Leon Trotsky, a agora empobrecida família judia é forçada a fugir da União Soviética. Estabelecem-se com o irmão do pai em Siracusa, Nova Iorque, onde Solomon Derenkovsky integra o corpo clínico do Hospital Psiquiátrico local e, pouco tempo depois, a família é oficialmente autorizada a encurtar o nome para Deren. Em 1928 os Deren tornam-se cidadãos norte-americanos.

Formação Acadêmica

Quando, em 1930, os pais se separaram, Deren é enviada, em regime de internato, para a Escola Internacional de Genebra, na Suíça, onde estuda francês, alemão e russo. Em 1933 retorna aos Estados Unidos e inicia os seus estudos superiores na Universidade de Siracusa, onde frequenta o curso de jornalismo e ciência política (tornando-se activista da organização trotskista Liga da Juventude Socialista (YPSL), na qual conhece Gregory Bardacke, com quem viria a casar em 1935, aos 18 anos). Datam desta época os seus primeiros interesses pelo cinema. Em 1935 transfere-se para a Universidade de Nova Iorque, onde ela e o marido se tornam muito activos em várias causas socialistas. Terminado o curso e separada de Gregory Bardacke (o divórcio só seria decretado em 1939), inicia um mestrado em literatura inglesa e poesia simbolista na Escola Nova de Pesquisas Sociais, que completa em 1939 no Colégio Smith. Terminados os estudos, começa a trabalhar como assistente para vários escritores e editores, enquanto paralelamente desenvolve o seu interesse pela poesia.

Cinema

Em 1941 torna-se assistente pessoal da coreógrafa / dançarina / antropóloga Katherine Dunham, pioneira da dança negra e autora, em 1936, de um estudo antropológico sobre o Haiti. O trabalho com Dunham inspira Deren a escrever um ensaio intitulado Religious Possession in Dancing. No final de uma digressão, a Companhia de Dança Katherine Dunham fixa-se em Los Angeles durante alguns meses, para trabalhar em Hollywood. É aí que Deren conhece Alexander Hackenschmied, um famoso fotógrafo e operador de câmara de origem checa, que em 1942 se tornaria o seu segundo marido, e que por sugestão da própria Deren, que achava Hackenschmied demasiado judeu, encurta o seu nome para Alexander Hammid. Deren aproveita a pequena herança de seu pai para comprar em segunda-mão uma câmara Bolex de 16mm, que ela e Hammid usaram para realizar o seu primeiro – e mais famoso – filme, Meshes of the Afternoon (1943), em Hollywood. Meshes of the Afternoon preparou o terreno para os filmes americanos de vanguarda dos anos 40 e 50 e seria reconhecido como um marco incontornável do cinema experimental.

Deren regressa a Nova Iorque em 1943 e passa a assinar com um novo nome: Maya (que era o nome da mãe de Buda, assim como uma antiga palavra para água e a palavra que designa o “véu da ilusão” na mitologia Hindu). André Breton, Marcel Duchamp, Oscar Fischinger, John Cage e Anaïs Nin tornam-se parte do seu círculo social de Greenwich Village e a sua influência começa a fazer-se sentir no trabalho de realizadores como Willard Maas, Kenneth Anger, Stan Brakhage, Sidney Peterson, James Broughton, Gregory J. Markopoulos e Curtis Harrington.

No decurso dos anos imediatos Deren continua a criar obras inovadoras em 16mm, nomeadamente At Land (1944) e Study in Choreography for Camera (1945). Em 1946 aluga o Teatro de Provincetown, no centro de Nova Iorque, para mostrar Meshes of the Afternoon, At Land e Study in Choreography for Camera num evento intitulado Three Abandoned Films que durou vários dias. Esta acção audaciosa inspiraria outros realizadores a fazerem a auto-distribuição do seu trabalho. Nesse mesmo ano ganha um Fellowship da Fundação Guggenheim pelo “Trabalho Criativo no Domínio Cinematográfico”, tendo sido o primeiro realizador a ganhar o prestigiado prémio. As suas fotografias e ensaios, incluindo An Anagram of Ideas on Art, Form and Film começam a surgir na imprensa underground. Inicia também o planeamento de um filme sobre transe e ritual, envolvendo a dança, os jogos infantis e os filmes etnográficos realizados por Gregory Bateson e Margaret Mead sobre o transe no Bali.

Em 1947 é-lhe atribuído o “Grande Prémio Internacional para Filmes de 16mm - Classe Experimental” no Festival de Cinema de Cannes, por Meshes of the Afternoon. É a primeira vez que o prémio é concedido aos Estados Unidos e a uma realizadora mulher. Nesse mesmo ano divorcia-se do realizador Alexander Hammid.

A 13 de Outubro de 1961 Maya Deren morre repentinamente de um derrame cerebral, aos quarenta e quatro anos de idade.

A visão cinematográfica de Maya Deren continua a influenciar realizadores de cinema um pouco por toda a parte (de vanguarda e outros) e o seu trabalho é estudado nas mais prestigiadas escolas de cinema do mundo. A edição em DVD dos seus filmes ampliou-lhe a audiência para um público menos especializado. Em 1985, o Instituto do Filme Americano (AFI) criou o Prémio Maya Deren, para dignificar a contribuição e o significado do trabalho cinematográfico independente. Nos Arquivos de Filmes de Antologia (AFA), em Nova Iorque, foi erigido o Teatro Maya Deren, de 66 lugares, para a exibição dos seus filmes e vídeos.

Filmografia
  • Meshes of the Afternoon (1943), 16mm, 14’, p&b, mudo (sonorizado em 1952 por Teiji Ito) - com Alexander Hammid;

  • The Witches' Cradle (1943, não finalizado), 16mm, 13’ rushes, p&b, mudo - com Marcel Duchamp e Pajorita Matta;

  • At Land (1944), 16mm, 15’, p&b, mudo - fotografia de Hella Heyman e Alexander Hammid;

  • A Study in Choreography for Camera (1945), 16mm, 3’, p&b, mudo - com Talley Beatty;

  • Ritual in Transfigured Time (1946), 16mm, 15’, p&b, mudo - coreografia de Frank Westbrook, fotografia de Hella Heyman - com Frank Westbrook, Rita Christiani, Anaïs Nin e Gore Vidal;

  • The Private Life of a Cat (1947, co-realizado com Alexander Hammid), 16mm, 29’, p&b, mudo e sonoro;

  • Haitian Film Footage (1947-55, não finalizado), 16mm, 4h rushes, p&b, mudo/sonoro (finalizado em 1981 por Teiji e Cherel Ito com o título Divine Horsemen: The Living Gods of Haiti);

  • Meditation on Violence (1948), 16mm, 13’, p&b, sonoro - colagem musical de Maya Deren - com Chao-li Chi;

  • Medusa (1949, não finalizado), 16mm, 10’ rushes, p&b, mudo - com Jean Erdman;

  • The Very Eye of Night (1952-55), 16mm, 15’, p&b, sonoro - coreografia de Antony Tudor, música de Teiji Ito - com Metropolitan Opera Ballet School;

  • Season of Strangers (1959, não finalizado), 16mm, 58’ rushes, p&b, mudo;


Assista agora a obra A Study in Choreography for Camera (1945), 16mm, 3’, p&b, mudo - com Talley Beatty.

Fontes: Wikipédia e Youtube.

Para ler o artigo completo, acesse: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maya_Deren